ARTIGOS
A FORMAÇÃO DA PRIMEIRA ELITE COLONIAL DOS SERTÕES
DE MOMBAÇA: TERRA, FAMÍLIA E PODER (1706-1782)¹

Vila
de Maria Pereira - Século XIX
Rafael
Ricarte da Silva*
Introdução
Este
artigo apresenta algumas considerações e propostas de estudo
acerca da constituição histórica dos Sertões
de Mombaça. A documentação utilizada na pesquisa
consta de cartas de sesmarias, inventários post-mortem, registros
de casamento, batizado e nascimento, manuscritos avulsos do Conselho Ultramarino
referentes às capitanias do Ceará, Pernambuco e Rio Grande
do Norte e documentos sobre o período colonial que estão
em posse do Arquivo Público do Estado do Ceará. Neste artigo,
trabalharemos principalmente com estas últimas fontes citadas e
com as cartas de sesmarias.
A
escrita sobre os Sertões de Mombaça é bastante
deficitária. Temos conhecimento e dialogamos com dois autores,
Augusto Benevides e José Lemos. Augusto Tavares, filho de Mombaça,
membro do Instituto Histórico do Ceará e tabelião
do cartório da cidade tentava com seu estudo, na década
de 1980, deixar uma história fiel dos principais acontecimentos
e nomes da cidade baseado em documentação cartorial e eclesiástica,
bem como em relatos dos mais velhos. Segundo o mesmo na introdução
de seu livro, este serviria para que "a mocidade de minha terra
poderá adquirir uma noção do que tem sido a vida
do município e conhecer nomes que tiveram destacada atuação".
(2) O objetivo central do autor é, através das reconstituições
familiares, traçar um perfil das instituições públicas
e políticas do município e analisar a presença de
sua família na vida administrativa deste.
A
proposta de nosso trabalho é fugir deste viés e tomar uma
abordagem que permita pensar a historicidade da região dentro de
um contexto mais amplo, pois a dimensão deste processo estava integrada
numa rede de ações colocadas em prática pela administração
colonial. Pensar a formação histórica deste espaço
e as relações de poder de seus agentes é ter em mente
uma mobilidade destes sujeitos em seus percursos de idas e vindas por
estes espaços coloniais em busca de melhores condições
sociais e econômicas. Portanto, o estudo estará pautado na
discussão das relações sociais, na formação
das elites locais, nas estratégias usadas em suas atuações
sociais, políticas e econômicas como forma de construção
e movimentação destes e nestes espaços coloniais
e não meramente um estudo que busque somente as origens do espaço
em análise com seus "heróis".
A
formação da primeira elite colonial dos Sertões de
Mombaça
A
ocupação do território da capitania do Ceará
ocorreu por meio da concessão de sesmarias para a atividade pastoril.
Em consórcio desta, fazia-se o combate ao gentio. É nas
duas últimas décadas do século XVII e na primeira
metade do século XVIII que o processo de concessão de terras
intensifica-se e onde, também, teremos o maior combate aos indígenas
na conhecida "guerra dos bárbaros". (3) As bandeiras
de caça aos índios e a marcha do gado foram os elementos
constitutivos do ímpeto colonizador sertão adentro. O crescimento
do cultivo e exploração da cana-de-açúcar
necessitava de terras e carne. A expansão da pecuária para
o interior foi-se dando gradativamente com a presença de criadores
de gados que receberam cartas de sesmarias para ali poderem criar seus
gados "vacuns e cavallares". Conforme demonstra Almir Leal de
Oliveira, a relação entre sesmaria e atividade pastoril
proporcionou a colonização da capitania do Ceará:
"Durante
a conquista e colonização, a expansão dos interesses
metropolitanos seguiu assim o desenvolvimento da atividade pastoril: abriram-se
os caminhos pelo sertão, pelas ribeiras dos rios, gerando povoamento
rarefeito e formando as fazendas de criar. Desta forma se formaram as
principais rotas de boiadas, sendo que a principal se iniciava na foz
do Jaguaribe e penetrava o sertão pela ribeira deste rio até
o Cariri, onde se integrava com outros caminhos coloniais...".
(4)
A
distribuição das sesmarias na capitania do Ceará
seguiu os caminhos dos principais rios: Jaguaribe, Banabuiú, Salgado,
etc. Feitas às concessões nas margens destes, passaram-se
às doações aos demais afluentes. As formações
de adensamentos populacionais e vilas na capitania do Ceará, também,
esteve ligada ao movimento das concessões de terras para a criação
de fazendas de gado. Em muitos casos, era a partir do fluxo do gado nestas
áreas que as povoações começaram a ser formadas.
Exemplo de Icó, Aracati e Quixeramobim. (5)
Ao
longo do século XVIII os administradores da capitania buscavam
informações e fazer levantamentos de dados acerca dessas
condições geográficas, populacionais e econômicas.
Numa carta do Ouvidor do Ceará, Manuel Magalhães Pinto e
Avelar à rainha, D. Maria I, este fala sobre a situação
econômica da capitania após o primeiro ano de seu cargo (1787)
e algumas medidas que poderiam mudar este quadro, dizia ele:
"A
Capitania do Ceará Grande, huá das mais extensas do Brasil,
jás ainda quazi toda e inculta, e dezaproveitada, e se pode dizer
que se acha ao dia de hoje em os princípios da sua povoação
e Cultura; dipois que pella extinção da Companhia de Pernambuco,
a Liberdade do Comercio dillatou o insignificante e pequeno trafico que
nella se fazia..." (6)
Segundo
o Ouvidor, essa situação era resultado dos diminutos ou
quase inexistentes rendimentos que a Câmara da Vila de Fortaleza
conseguia arrecadar, dificultando o melhoramento das condições
públicas na capitania que melhoraria com a liberdade de comércio.
Ademais, ele argumenta que esse comércio tomaria outro impulso
se as vias de comunicação da capitania estivessem em melhores
condições e estabelece que apesar de "insignificante"
existia um fluxo de mercadorias e pessoas entre as povoações
da capitania. Por fim, falando sobre o estado da capitania no que diz
respeito aos criminosos e a impunidade destes, ele observa que:
"Huâ
das principais razoens por que se fazem indispensáveis as cadeias
em todas as Villas, he pella grande distancia que de ordinário
vai de huas as outras, medindo muitas vezes entre si o espasso de
60 a 70 legoas de longitude". (grifo nosso) (7)
O
povoado dos Sertões de Mombaça (8) surgiu por volta
do final do século XVII e começo do XVIII com as concessões
de sesmarias feitas para este território. A criação
da Vila, com o nome de Maria Pereira, substituindo temporariamente a designação
de Mombaça, é datada de 1851. Sua formação
judiciária estava ligada à comarca de Quixeramobim desde
1835, sendo transferida posteriormente para São João do
Príncipe (Tauá - atual região do Inhamuns). A criação
da capela, Nossa Senhora da Glória, é de 1782, em terras
doadas pela filha de Maria Pereira da Silva, e esteve desde o começo
ligada a Quixeramobim. (9) Este povoado pertencia a Ribeira do Rio Jaguaribe.
Esta compreendia os rios: Banabuiú (que banhava os Sertões
de Mombaça), Quixeramobim, Palhano, Salgado, Cariús,
dentre outros. Neste período, as principais vias de comunicação
do Ceará colonial (Estrada Geral do Jaguaribe, Estrada das Boiadas
e Estrada Nova das Boiadas) convergiam para esta ribeira formando vários
caminhos subsidiários proporcionados pela pecuária. (10)
O
sistema de concessão de sesmarias (distribuição de
terras) foi aplicado no Brasil a partir do governo de D. João III,
no momento de criação das capitanias hereditárias.
Cabia aos donatários repartirem as terras com os moradores pelo
regime de sesmarias. Após a concessão da terra o colono
ficava obrigado a ocupar o território com produção
e teria que demarcar sua área. Esse sistema de sesmarias na Colônia
difere do sistema da Metrópole em vários aspectos. Na última
foi criada para responder às necessidades peculiares de uma conjuntura
econômica pela qual Portugal passava - crise de alimentos e carência
de mão-de-obra. Na Colônia, o interesse principal era o povoamento
da área despovoada, e para produção de gêneros
com vista ao abastecimento.
O
estudo das sesmarias é rico em possibilidades de trabalho. A partir
do nome do requerente da terra é possível investigar a formação
das concentrações de extensas propriedades territoriais
por parte do mesmo ou de familiares. Não se trata de buscar biografias,
mas pensar o sujeito de forma relacional, envolvido nas mais variadas
possibilidades de ações para tentar manter ou mudar o status
social na sociedade em que está inserido. Com essa investigação
micronominativa, segundo Ginzburg, fio condutor da investigação,
é possível reconstituir o entrelaçamento de diversas
conjunturas que o indivíduo permeia através de seu tecido
social. (11)
As
sesmarias doadas nos Sertões de Mombaça foram dezoito,
no período que vai de 1706 a 1751. Os pedidos eram justificados
mediante dois argumentos: as terras estariam desaproveitadas e os requerentes
possuíam gados e não teriam terras para os acomodarem. De
acordo com os requerentes do pedido de número 148, estes:
"são
puçuidores de gados assim Vaquens como cavalares enão tem
terras próprias pa. que posão acomodar e os trazem pro terras
alheas recebendo muntas perquas ecomo... elles suplicantes tem noticia
e sabem que há muitas terras ocultas dezaproveitadas...".
(12)
Assim,
pedem para que possam acomodar seus gados e gerarem divisas com suas criações.
O argumento aparece também no pedido de número 178. Segundo
Maria Pereira da Silva e seus companheiros:
"elles
suplicantes pesuem cantia degados vacuns e cavalares os quais trazem pella
ribeira do Jaguaribe em terras alheias pagando dellas arendamento pelas
nam ter próprias ao que lhe baste...". (13)
Nos
dezoito pedidos encontramos a justificativa para criação
de gados e somente um levantava o argumento da lavoura, sem deixar de
destacar a criação de gados. Estamos, através do
cruzamento das informações obtidas nas sesmarias e nos inventários,
tentado, constatar a real efetivação desta ocupação
por meio da criação das fazendas de criar. A localização
e os nomes destes (ou familiares) podem nos levar a essa afirmação.
Conforme
expõe a historiadora Regina Célia Gonçalves a aliança
entre poder metropolitano e poder local era expressa na contrapartida
que os beneficiados com as concessões tinham a oferecer, no caso
"a conquista, a defesa e o povoamento da terra. Essa era a moeda
de troca dos moradores em suas negociações com o poder central".
(14)
Estas
requisições eram feitas de duas formas. Através de
pedidos coletivos ou individuais. O que podemos observar é uma
certa divisão entre estas, como aparece no quadro abaixo.
QUADRO
I
RELAÇÃO
ENTRE O ANO DO PEDIDO E A FORMA
PERÍODO |
QUANTIDADE
TOTAL |
FORMA
DO PEDIDO |
FORMA
DO PEDIDO |
|
|
INDIVIDUAL |
COLETIVO |
1706
- 1710 |
09 |
02 |
07 |
1711
- 1751 |
09 |
07 |
02 |
FONTE:
Arquivo Público do Estado do Ceará. Datas de Sesmarias do
Ceará e índices das datas de sesmarias: digitalização
dos volumes editados nos anos de 1920 e 1928.
Estes
dados nos proporcionam a possibilidade de levantar a hipótese de
que uma das estratégias que os sesmeiros usaram na requisição
de suas terras, neste primeiro momento, era o pedido coletivo. É
possível supor, que estes pensassem que fazendo desta maneira teriam
mais condições de ter seu pedido aceito para o caso de uma
primeira ocupação. Ademais, nestas mesmas solicitações,
aparece outra singularidade entre os períodos acima destacados.
Este outro item é a menção ou não da patente,
cargo ocupado pelos solicitantes. Nos pedidos coletivos encontramos na
sua quase totalidade. Já os pedidos individuais apresentam com
menor freqüência à menção a cargos, patentes
ou titulação dos requerentes. Assim, podemos inferir que
estes dois créditos aliados garantiriam aos requerentes a obtenção,
com maior facilidade, das terras pedidas.
Nestas
requisições coletivas, constatamos o agrupamento de pessoas
que possuíam vínculos familiares. Estes agrupamentos eram
realizados mediante relações de parentesco ou através
de algum vínculo que os mesmos possuíam na região
onde moravam. Maria Pereira da Silva, residente em Pernambuco, quando
da aquisição das terras, teve bastante destaque nos Sertões
de Mombaça. Através desta se formaram as relações
iniciais de casamento com outros sesmeiros. Foi o caso de Serafim Dias,
este casado com Inácia Pereira da Silva e Pedro Barbalho, casado
com Teresa de Sousa, filha de Maria Pereira da Silva. (15) Francisco José
Pinheiro ressalta que na capitania do Ceará estas alianças
"envolvendo os laços familiares e através do casamento,
se constituíram em importante mecanismo na constituição
do poder local". (16) Assim, para se estudar a constituição
dos espaços coloniais seria necessário, segundo Fábio
Kühn:
"estudos
que articulem as redes sociais, as relações de parentesco,
residência e vizinhança; as estratégias matrimoniais
e os sistemas de herança; o papel dos vínculos de amizade
e solidariedade; enfim, todo o universo de sociabilidade em que se insere
o indivíduo". (17)
É
nesta perspectiva, de um entrelaçamento das ações
desenvolvidas por estes sujeitos, que podemos reconhecer a importância
que as estratégias familiares e redes sociais dão sentido
ao funcionamento da sociedade pensada pelas elites locais. Antonio Otaviano
ressalta o valor deste viés de análise na apresentação
de seu estudo sobre o Ceará colonial, visto a partir da dinâmica
do domicílio e da violência. Segundo o autor as relações
familiares são importantes porque:
"se
consolidavam enquanto elemento fundamental da transmissão, administração
e defesa de propriedade, na configuração de estratégias
de sobrevivência diante das constantes secas, além de se
estabelecer como signo de influência política".
(18)
Não
nos propomos, em nosso estudo, a fazer uma reconstituição
familiar, mas sim entender como a conquista e colonização
deste sertão foi efetivada, através das relações
familiares e econômicas desenvolvidas entre estas famílias
e com outros sujeitos de seus circuitos sociais no cotidiano do trabalho
das fazendas de criar e em seus negócios no mercado da capitania
cearense. Dar a família este espaço de importância
no processo de colonização da capitania do Ceará,
sem dúvida é bastante salutar, pois é justamente
nesta dimensão familiar onde os arranjos econômicos e políticos
foram sendo arquitetados.
Outro
item de extrema relevância para o trabalho é quanto à
procedência destes sesmeiros. Qual seria a origem social destes
sesmeiros? Nas sesmarias encontramos requerentes vindos de outras localidades
da capitania do Ceará, das capitanias vizinhas (Rio Grande do Norte
e Pernambuco). Qual o lugar social e econômico que estes sesmeiros
ocupavam em suas localidades?
No
quadro abaixo podemos ver alguns exemplos destes deslocamentos proporcionados
pela aquisição de terras.
QUADRO
II
REQUERENTES
DE SESMARIAS E SUAS PROCEDÊNCIAS
NOME |
ORIGEM |
Antônio
Ferreira Froes |
Capitania
do Ceará / Banabuiú |
Antonio
Maciel de Andrade |
Capitania
do Ceará / Vila de São José de Ribamar |
Braz
Pereira da Costa |
Capitania
do Ceará / Vila do Icó |
João
de Barros Braga |
Capitania
do Ceará |
Manoel
Gomes de Araújo |
Capitania
do Ceará / Quixeramobim |
Manoel
Gomes de Freitas |
Capitania
de Pernambuco |
Manoel
Lourenço de Matos |
Capitania
de Pernambuco |
Maria
Pereira da Silva |
Capitania
de Pernambuco |
FONTE:
Arquivo Público do Estado do Ceará. Datas de Sesmarias do
Ceará e índices das datas de sesmarias: digitalização
dos volumes editados nos anos de 1920 e 1928.
A
historiadora Maria Luiza Marcilio, tenta estabelecer uma possível
classificação a partir dos deslocamentos feitos pelos sujeitos
no período colonial. Na definição e motivação
para tal mobilidade estaria a ocupação da terra desbravada
no conflito com os indígenas e a aquisição da posse
da mesma. Para a autora, as migrações internas intra-regionais,
voluntárias e permanentes seriam o modo de estabelecimento de maior
intensidade e em conjunto com outras táticas tendia a gerar uma
concentração de terras em poder de poucas famílias.
Dentre as razões que gerariam tal concentração destaca:
"o sistema de posse e propriedade da terra, aliado ao sistema
de casamento e de heranças entre as famílias proprietárias".
(19) Marcilio, ainda, aponta uma estratégia destas famílias
na concentração de propriedades que consistiria na:
"transmissão
do patrimônio fundiário e móvel, ...[cedendo] a propriedade
principal a um dos filhos e estimulando a saída dos demais para
ocupar terrenos recém-incorporados, ou em terras virgens a serem
desbravadas". (20)
Para
nosso caso, dos dezoitos pedidos que analisamos verificamos que 13 são
pedidos feitos por moradores da capitania do Ceará, 03 de fora
da capitania (Rio Grande do Norte e Pernambuco) e 02 não apresentam
a informação sobre a procedência dos mesmos. A partir
deste levantamento, podemos afirmar que a maior parte dos sesmeiros dos
Sertões de Mombaça eram constituídos por
sujeitos que já residiam na capitania do Ceará. A constatação
destes deslocamentos evidencia uma mobilidade destes sujeitos que através
da obtenção de terras, cargos, patentes e/ou casamentos
circulavam pelos espaços que iam sendo construídos a partir
destas práticas.
Cosme
Pereira Façanha, residente em Pernambuco, quando dos seus dois
pedidos de terras feitos em 1706 em conjunto com outros requerentes era
almoxarife da Fazenda Real de Pernambuco, cargo ocupado por cerca de 18
anos. Este cargo era importante no período, pois o almoxarife da
Fazenda Real era uma das autoridades responsáveis por controlar,
fiscalizar o comércio existente na capitania. Portanto este deixa
o cargo que ocupava na Capitania de Pernambuco e migra para os Sertões
de Mombaça, onde estabelece sua propriedade. (21)
O
que nos chama a atenção nos sesmeiros que possuíam
patentes e cargos administrativos é a busca destes em se distinguir
dos demais através destes títulos que possuem ou outros
que almejavam. Este tema tem merecido bastante destaque em estudos do
período colonial, por meio de estudo de caso individuais ou de
grupos. Segundo Fábio Kühn, seriam três atributos essenciais
que definiriam uma elite social: riqueza, status e poder. O primeiro critério
é elementar para própria existência do grupo. Os demais
são frutos da obtenção de títulos e nomeações
para cargos nas instituições coloniais. O que conferia a
quem recebesse, um status de diferenciação social perante
os demais.
Laura
de Mello e Souza, na introdução de Os desclassificados
do ouro, expõe os pontos que lhe fizeram trabalhar com o conceito
de desclassificação social e não com o de marginalidade.
Segundo a autora, um dos pontos seria o fato da sociedade colonial ser
configurada em termos estamentais, a partir de critérios de classificação
expressos nos mais variados indicadores. Logo, seria possível analisar
os processos pelos quais um grupo ou um indivíduo toma sua posição
na sociedade colonial.
Em
nossa consulta aos registros de sesmarias e os manuscritos do Conselho
Ultramarino referentes à capitania do Ceará, o nome do Coronel
João de Barros Braga sempre aparecia com um destaque nas ações
de "desbravamento do sertão". João de Barros Braga
é um dos sesmeiros, na capitania do Ceará, que consegue
maior número de concessão de terras sendo 11 no total. Lembramos
aqui, que uma das normas para concessão das terras era a não
autorização de dois ou mais pedidos por pessoa a não
ser que ficasse provado que o requerente tinha condições
de povoar e cultivar todos os domínios solicitados.
Filho
de Antonio de Barros, Capitão de Infantaria do Terço da
Bahia, a trajetória de João de Barros Braga é bem
contundente no que se refere a ocupação de cargos administrativos
mediante a troca de favores com a administração colonial.
Sua trajetória é marcada pela conquista de diferentes cargos
e patentes na capitania do Ceará e Rio Grande do Norte. Um dos
primeiros cargos que recebe por ter prestado grande auxílio no
combate ao gentio, ajudando na edificação de construções
e disponibilização de armamentos, é o de Capitão
da Cavalaria da Ordenança do Distrito da Ribeira do Jaguaribe.
Na nomeação do posto, essa contribuição dada
é ressaltada:
"Atendendo
ao dito João de Barros Braga ser pessoa de satisfação
e se achar na edificação de Fortaleza que se faz na dita
Ribeira, dando (carros de boi) para a condução das munições,
balas e canoas, a ser o que levantou o Arraial e Igreja, tudo a sua custa
(...) Confirmo no posto de Capitão da Cavalaria da Ordenança
do Distrito da Ribeira do Jaguaribe (...) e gozara de todas as honras,
privilégios, liberdades, isenções e franquezas que
em razão dela lhe tocarem". (22)
Nesta
carta patente fica clara a menção ao que tanto este sujeito
buscava. Poderia ele, João de Barros, gozar de todas as honras
e privilégios que o cargo lhe proporcionava. É desta forma,
através de troca de favores e concessões que João
de Barros Braga consegue o posto de Capitão de Cavalaria e que
mais tarde recebe o comando da capitania do Rio Grande do Norte. Mais
uma vez os serviços prestados são ressaltados:
"João
de Barros Braga, que tem servido a Vossa Majestade na cappitania do Seara
grande há perto de trinta e tres annos, contados de 1696 até
o de 1729, assim no posto de Ajudante, como no de Capitão de Cavallos,
no Coronel da Villa de Sam Jozeph de Ribamar...". (23)
Neste
mesmo documento, o parecer que nomeia João de Barros para o cargo
evidencia essa relação entre serviços prestados e
concessão de cargos:
"Parecco
ao Conselho votar em primeiro Lugar em João de Barros Braga pelos
muitos serviços, merecimentos, e experiencia que tem adquerido
naquelles Certões, porque se faz digno dando o que se pede e mais
apto para este governo". (24)
Ademais,
este ao pleitear o cargo de capitão-mor do Ceará enumera
os serviços já prestados ao governo e por tê-los cumpridos:
"com
grande zello, incansável trabalho, assistindo a todas as obrigaçons
com o mayor desvello empregandoçe no Real serviço com todo
o cuidado". (25)
Porém
o mesmo acaba não conseguindo o posto tão almejado.
As
primeiras indicações que temos, a partir destes casos iniciais
levantados neste trabalho, mostram-nos que o cruzamento das informações
já retiradas das fontes com as que estamos tendo acesso neste momento,
contidas nos registros eclesiásticos, evidenciam um emaranhado
de relações compostas por estes sesmeiros na tentativa de
configurar uma rede de relações que fomentasse a constituição
de uma elite social baseada desde os pedidos das sesmarias, nas articulações
econômicas das fazendas de criar e nos casamentos.
(SILVA,
Rafael Ricarte da. A formação da primeira elite colonial
dos sertões de Mombaça: Terra, família e poder (1706-1782).
Revista do Arquivo Público do Estado do Ceará,
Fortaleza, n. 6, p. 155-168, 2009.)
*Rafael
Ricarte da Silva. Mestre em História Social pela Universidade
Federal do Ceará (UFC).
NOTAS
1.A
pesquisa está sendo desenvolvida no Programa de Pós-Graduação
em História Social da Universidade Federal do Ceará, sob
orientação do Professor Dr. Almir Leal de Oliveira e financiada
pela Fundação Cearense de Apoio ao Desenvolvimento Científico
e Tecnológico - FUNCAP.
2.BENEVIDES, Augusto Tavares de Sá e. Mombaça:
biografia de um sertão. Fortaleza: Imprensa Oficial do
Estado do Ceará, 1980. p. 28.
3.Sobre
a guerra dos bárbaros ver: PUNTONI, Pedro. A guerra dos
bárbaros: povos indígenas e colonização do
sertão nordeste do Brasil (1650-1720). São Paulo:
Eduso/Hucitec, 2002.
4.OLIVEIRA,
Almir Leal de. A dimensão atlântica da empresa comercial
do charque: o Ceará e as dinâmicas do mercado colonial (1767-1783).
In: Anais do I Encontro Nordestino de História Colonial: Territorialidades,
Poder e Identidades na América Portuguesa - séculos XVI
a XVIII. Universidade Federal da Paraíba. João Pessoa, 2006.
p. 2.
5.VIEIRA
JUNIOR, Antônio Otaviano. Família na Seara dos sentidos:
domicílio e violência no Ceará (1780-1850).
Tese (Doutorado em História) - Programa de Pós-Graduação
em História da Universidade de São Paulo, São Paulo,
2002.
6.Arquivo
Histórico Ultramarino. Documentos Manuscritos Avulsos da Capitania
do Ceará. CT: AHU_ACL_CU_017, Cx 11, D. 644. Carta do Ouvidor do
Ceará, Manuel de Magalhães Pinto e Avelar, à rainha
[D. Maria I] sobre a situação econômica da referida
capitania. Quixeramobim, 03 de fevereiro de 1787.
7.Idem.
8.Os
Sertões de Mombaça compreendia a área dos atuais
municípios de: Mombaça, Senador Pompeu, Piquet Carneiro
e Pedra Branca. Optamos estudar toda essa área devido estar muito
interligada através dos pedidos coletivos de sesmarias e nas relações
que estes sesmeiros estabeleceram. Preferimos, também, a designação
de Sertões de Mombaça por melhor caracterizar este território.
Estes municípios hoje pertencem ao Sertão Central do Ceará,
distante de Fortaleza cerca de 290 quilômetros.
9.Sobre
a criação da Vila de Maria Pereira ver: BENEVIDES, Augusto
Tavares de Sá e. Mombaça: biografia de um sertão.
Fortaleza: Imprensa Oficial do Ceará, 1980.
10.GIRÃO,
Valdelice Carneiro. As Oficinas ou Charqueadas no Ceará.
Dissertação (Mestrado em História) - Programa de
Pós-Graduação em História da Universidade
Federal de Pernambuco, Recife, 1982. p. 12-53.
11.GINZBURG,
Carlo. O nome e o como: troca desigual e mercado historiográfico.
In: A micro-história e outros ensaios. Rio de
Janeiro: Bertrand Brasil, 1989. p. 170-171.
12.Arquivo
Público do Estado do Ceará. Datas de Sesmarias do Ceará
e índices das datas de sesmarias: digitalização dos
volumes editados nos anos de 1920 e 1928. Data de sesmaria nº 148.
Vol. 3. Ano 1706.
13.Arquivo
Público do Estado do Ceará. Datas de Sesmarias do Ceará
e índices das datas de sesmarias: digitalização dos
volumes editados nos anos de 1920 e 1928. Data de sesmaria nº 178.
Vol. 3. Ano 1706.
14.GONÇALVES,
Regina Célia. Guerra e açucares: política
e economia na Capitania da Parayba, 1585-1630. Bauru, SP: Edusc,
2007. p. 162. Coleção História.
15.Até
o presente momento não podemos identificar ainda todos os laços
de parentesco, econômicos e sociais que os sesmeiros tinham, sendo
possível até agora a composição de parte destes
entrelaçamentos mediante o cruzamento de dados das sesmarias, inventários
post-mortem e documentos do Conselho Ultramarino referentes às
capitanias do Ceará, Rio Grande do Norte e Pernambuco.
16.PINHEIRO,
Francisco José. Formação Social do Ceará
(1680-1820): O papel do Estado no processo de subordinação
da população livre e pobre. Tese (Doutorado em
História) - Programa de Pós-Graduação em História
da Universidade Federal de Pernambuco, Recife, 2007. p. 81.
17.KÜHN,
Fábio. Gente da Fronteira: família, sociedade e
poder no Sul da América Portuguesa - Século XVIII.
Tese (Doutorado em História) - Programa de Pós-Graduação
em História da Universidade Federal Fluminense, Niterói,
2006. p. 16.
18.VIEIRA
JUNIOR, Antônio Otaviano. Família na Seara dos sentidos:
domicílio e violência no Ceará (1780-1850).
Op. cit. p. I.
19.MARCILIO,
Maria Luiza. "Migrações no Brasil Colonial: uma
proposta de classificação". In: LPH. Revista
de História. Volume 1, número 1, 1990. Departamento
de História da UFOP. p. 41.
20.MARCILIO,
Maria Luiza. "Migrações no Brasil Colonial: uma
proposta de classificação". Op. cit. p. 41-42.
21.Arquivo
Histórico Ultramarino. Documentos Manuscritos Avulsos da Capitania
de Pernambuco. Documento 0270; CD 03; Pasta 34; Sub-pasta 002. Carta de
João do Rego Barros ao rei sobre a relação do rendimento
dos contratos da Capitania de Pernambuco, referente ao tempo do almoxarife
Cosme Pereira Façanha. Ano de 1710.
22.Arquivo
Público do Estado do Ceará. Coleção de documentos
doados ao Arquivo Público do Estado do Ceará pelo Professor
Limério Moreira da Rocha, p. 118. Carta Patente do Posto de Capitão
da Cavalaria da Ordenança da Ribeira do Jaguaribe, passada a João
de Barros Braga. Ano de 1703. Trata-se do conjunto de documentos do período
colonial referente à administração do Brasil, com
predominância de fontes da capitania do Ceará. O recorte
temporal dessas abrange desde o final do século XVI a segunda metade
do século XVIII. Os documentos estão organizados por ordem
cronológica e todos transcritos. Os que estão sendo consultados
para nossa pesquisa são do período de 1699 a 1740. Tratam
da organização da capitania e da nomeação
de sujeitos para provisão de cargos, em especial os referentes
a João de Barros Braga.
23.Arquivo
Histórico Ultramarino. Documentos Manuscritos Avulsos da Capitania
do Rio Grande do Norte. Documento 148; CD 01; Pasta 003; Sub-pasta 001.
Consulta do Conselho Ultramarino ao rei D. João V, sobre a nomeação
de pessoas para o cargo de capitão-mor do Rio Grande do Norte,
por 3 anos. Resolução a nomear João de Barros Braga,
a 5 de Maio de 1730.
24.Idem.
25.Arquivo
Histórico Ultramarino. Documentos Manuscritos Avulsos da Capitania
do Rio Grande do Norte. Documento 200; CD 01; Pasta 004; Sub-pasta 001.
Requerimento do capitão-mor do Rio Grande do Norte, João
de Barros Braga, ao rei [D. João V] pedindo para ser provido no
cargo de capitão-mor do Ceará, em retribuição
dos seus serviços como capitão-mor do Rio Grande do Norte.
20 de outubro de 1734.
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