ENFOQUE
O DESCABIMENTO DA LEGÍTIMA DEFESA DA HONRA CONJUGAL COMO TESE
DEFENSIVA
Raugir Lima Cruz*
Antes
do Estado apresentar os contornos atuais, a Justiça era praticada
e efetivada pelos particulares. Era a chamada justiça privada onde
cada um fazia valer o seu direito da forma que lhe aprouvesse. Assim a
força prevalecia sobre a razão.
Chegado o momento em
que o Estado chamou para si a titularidade de dizer o direito, retirou
do indivíduo a possibilidade de fazer justiça pelas próprias
mãos, todavia, pela impossibilidade de fazer-se presente em todos
os lugares e em todos os momentos, facultou ao indivíduo a possibilidade
de por si próprio, em ocasiões excepcionais, fazer valer
os seus direitos, quando violados ou ameaçados por outrem.
Uma dessas excepcionalidades
é a excludente de ilicitude prevista no artigo 23, inciso II do
Código Penal que determina não haver crime quando o agente
pratica o ato em legítima defesa.
Entretanto para que
o agente que praticou o “crime” esteja acobertado pela legítima
defesa, necessário se faz que no caso concreto, ele tenha agido
dentro de certos limites e observado certos requisitos, previstos no artigo
25 do Código Penal, in verbis: “Endende-se por legítima
defesa quem, usando moderadamente dos meios necessários, repele
injusta agressão, atual ou iminente, a direito seu ou de outrem”.
Portanto, para que
não se configure crime, a agressão sofrida pelo autor do
fato deve ser atual ou iminente (futuro imediato) além de injusta,
ou seja, contrária ao direito, e ao repeli-la lançando mão
de sua defesa o agente deverá utilizar dos meios necessários
e agir com moderação, de forma que eles sejam eficazes e
suficientes para repelir a agressão, havendo proporcionalidade
entre a agressão sofrida e a defesa utilizada para repeli-la.
Visto de forma resumida
os elementos da legítima defesa, e sabendo-se que é possível
defender-se qualquer bem jurídico, próprio ou de terceiro,
inclusive o bem jurídico honra, surge a pergunta: - Podemos ampliar
essas possibilidades até aceitar-se a tese da “legítima
defesa da honra conjugal”?
Honra vem a ser o sentimento
de dignidade própria que leva o indivíduo a procurar, merecer
e manter a consideração geral. Tal sentimento é mutável
e multiforme, de caráter pessoal, próprio, individual, cujo
sentido varia de indivíduo para indivíduo, sofrendo variações
por influências externas e internas, cuja importância é
levada em consideração por todo o seio da humanidade “civilizada”.
Durante
muito tempo a alegação de crime de paixão e do criminoso
passional serviu de mote para fundamentar defesas e assegurar absolvições.
Bastava à defesa alegar a privação dos sentidos que
o réu apresentava após atingido pela desonra da traição
do cônjuge.
Considerava-se que
o criminoso passional não possuía periculosidade e o que
o levou a praticar o crime foram os fatores causados pelo cônjuge
traidor que havia quebrado um padrão moral estabelecido pela sociedade,
e não obstante o crime, o réu era merecedor de compaixão.
A
ação inadequada da mulher fatalmente atingiria a honra masculina
e essa transgressão era uma traição a honra que tinha
por gênese o casamento. Observa-se que a honra que atingia o grupo
familiar era atributo da mulher enquanto que a honra individual era inerente
ao homem.
Assim
sendo, o ato de traição praticado pelo cônjuge virago
caracterizava-se como uma perfídia à própria sociedade,
por isso motivo de repúdio ao cônjuge traidor. É como
se a mulher não possuísse honra própria. Diante do
contexto acreditamos que os motivos pelos quais alguns tribunais do júri
aceitem a tese da legítima defesa da honra são sócio-históricos.
Observamos
que o direito, em regra, não avaliza a pena de morte, além
do que num caso concreto, não obstante a dor moral do traído,
a desproporção entre a agressão a honra subjetiva
do indivíduo e a vida ceifada da companheira é deveras desmedida.
De
pronto vislumbramos a honra como caráter personalíssimo
do indivíduo, portanto, a traição de um cônjuge
macula a honra do autor e não a honra do traído, muito embora
o senso comum propender a considerar desonra para a vítima da perfídia.
A
vida de uma pessoa não pode ser retirada como forma de reparação
da honra conjugal maculada. O meio de reparar a honra ferida em detrimento
da vida de um ser humano é desproporcional e por isso inaceitável,
visto o bem vida exigir valoração e proteção
infinitamente superior ao bem honra.
Por
fim, ausentes quaisquer dos elementos objetivos contidos no artigo 25
do Código Penal, defendemos a impossibilidade de admissão
da tese de legítima defesa da honra conjugal perante o conselho
de sentença do tribunal popular do júri.
Obs.:
Se você tem alguma curiosidade ou dúvidas sobre seus direitos,
nos envie um e-mail para raugirlima@hotmail.com que tentaremos esclarecê-las
nos próximos artigos.
(Publicado
no jornal ,
Ano XXXV, nº 118, Junho/2011).
Untitled Document
*Raugir
Lima Cruz. Oficial de Justiça da Comarca de Quixelô-CE.
É mombacense de Senador Pompeu, Ceará, onde nasceu no
dia 15 de janeiro de 1966, filho de Etevaldo Lima Cruz e de Francisca
Zeneida Lima Cruz. Graduou-se em Pedagogia na Faculdade de Educação,
Ciências e Letras de Iguatu - FECLI. É bacharel em Direito
e pós-graduado em Direito Penal e Criminologia pela Universidade
Regional do Cariri - URCA. Obteve o 2º lugar no Concurso Literário
Rachel de Queiroz, promovido em 2006 pelo Fórum Clóvis
Beviláqua em comemoração aos 30 anos da sua biblioteca,
com a crônica .
A sua crônica foi publicada na coletânea “Sertão:
olhares e vivências” com os dez trabalhos classificados
no referido concurso. No dia 18 de dezembro de 2007 recebeu o título
de cidadão quixeloense concedido pela Câmara Municipal
de Quixelô. É autor dos artigos "Uma análise principiológica e legal das interceptações telefônicas: a produção probatória à luz do princípio da proibição da proteção deficiente", publicado na edição nº 87, ano XIV, abril/2011, da Revista Âmbito Jurídico e “A aplicação da Willful Blindness Doctrine na Lei 9.613/1998: A declaração livre e a vontade consciente do agente”, publicado no volume nº 9, edição 2011, da Themis, revista científica da Escola Superior da Magistratura do Estado do Ceará (ESMEC).
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