HISTÓRIA
Escultura “A Justiça”, de
Alfredo Ceschiatti, em Brasília-DF.
O
1º TRIBUNAL DO JÚRI DE MARIA PEREIRA*
"Eu
mesmo acompanhei uma árvore, que denominamos da Liberdade, a qual
por voto unânime foi plantada em minha porta. Cantamos o Hino Nacional
e ouviram-se, pela primeira vez nestes campos, vivas à Liberdade
e à Constituição." (Padre Ibiapina)
Se na sede da comarca
a situação era calamitosa, não era melhor nos termos
mais distantes. Ibiapina¹ sente o enorme fardo que pesa sobre seus
ombros, mas corajosamente decide carregá-lo. Resolve empreender
penosa viagem até Tauá, a quase 200 km da sede, já
nos limites com o Piauí, com passagem intermédia em Mombaça,
as duas principais vilas da comarca², naquele tempo. Suas tendências
inatas de andejo impelem-no ao sacrifício.
A
15 de janeiro de 1835 já se encontra em Mombaça
(antiga Maria Pereira), onde instala os jurados. Permanece
ali durante mais de vinte dias, tempo necessário para organizar
os serviços judiciais.
O que ali realizou,
ele mesmo o descreve no longo ofício que dirigiu ao Presidente
[José Martiniano de Alencar], a 30 de janeiro, que vale a pena
transcrever na íntegra:
"Exmo. Sr. - Ontem,
terminei a sessão dos jurados neste julgado e é para dar
a V. Exa. uma parte detalhada do que por aqui se faz, do que convém
fazer e da causa dos males destes sertões, que dirijo este a V.
Exa.
No dia 15 do corrente
mês instalei os jurados nesta povoação. Infinitas
dificuldades encontrei para pôr em andamento esta salutar instituição
neste ponto de nossa província.
A primeira e mais difícil
de vencer foi a inexata divisão do termo deste julgado. A Câmara
de Quixeramobim, a quem pertencia esse trabalho, deixou-o à discrição
e daqui originou-se grande confusão, porque uns réus diziam-se
do termo de Quixeramobim e outros deste, quando realmente eram daquele.
Atendendo, porém,
ao Decreto que regulou os limites deste termo pelo da freguesia, cortei
essas dificuldades que, para ter um resultado fixo, necessário
se faz que V. Exa. faça sancionar pela Assembléia Legislativa
este projeto, que junto remeto, o qual é deduzido do mesmo distrito
e só tem algumas explicações, que devem ser por todos
conhecidas.
Não achei casa
própria para nela trabalharem os jurados e a igreja, onde em falta
dessa deveriam trabalhar segundo o disposto no Código do Processo
Criminal, não serviu por mui pequena e maltratada. Servi-me de
uma casa particular, que as circunstâncias me ofereceram melhor.
Uma terceira dificuldade
me embaraçou bem e foi a falta de prisão qualquer. Remediamos
com uma casa tomada a um particular, estreita e sem segurança.
Finalmente, encontrei falta de tudo, porém a boa vontade dos habitantes
do país supriu muito bem essa falta.
Começamos nossos
trabalhos e muito tivemos que fazer. Os jurados mostravam as melhores
disposições na punição do crime, quando em
alta voz contra ele clamei. A isso somente se opunha a falta de ilustração
dos juízes de fato. Para remover este obstáculo, empreguei
todos os momentos, desde que cheguei a este lugar, em explicar-lhes o
Código do Processo Criminal, na parte que lhes era necessário.
Foi belo ver como estes pobres homens se entretinham com os códigos
abertos! Era para eles uma descoberta o verem, no Código Criminal,
tais e tais penas para tais e tais crimes. Maravilhavam-se das disposições
legislativas penais, sem as desgostar.
Aproveitei-me destas
disposições para infundir-lhes horror ao crime e interessá-los
na punição dele. Creio ter conseguido a primeira, pela mudança
que se experimentou então na linguagem, e a segunda, V. Exa. avaliará
pelas sentenças proferidas³, que junto remeto.
Para remediar e mudar
a primeira, fiz festejar o dia da abertura do júri, com o que todos
se alegraram dando parabéns a si mesmos. Convenci-os de que esses
bens emanam da Constituição. Eu mesmo acompanhei uma árvore,
que denominamos da Liberdade, a qual por voto unânime foi plantada
em minha porta. Cantamos o Hino Nacional e ouviram-se, pela primeira vez
nestes campos, vivas à Liberdade e à Constituição.
O remédio do
segundo mal depende de trabalhos mui longos, porque está todo na
educação. Todavia, falamos a linguagem do cidadão
manso, ensinamos a chorar à vista das desgraças dos nossos
semelhantes, fizemos passar como homens desprezíveis aqueles que
protegiam assassinos e a estes, por tigres da Escânia. Eles acharam,
como bem demonstraram, a minha linguagem preferível à sua
e, desde então, falou-se diverso porque se pensou assim. O acabamento
das vinganças era mui difícil, porque elas se fundavam em
antigas intrigas particulares, nascidas das diferentes crises políticas
por que tem passado a nossa província.
Reuni as pessoas mais
influentes deste lugar. Em uma ceia, conciliei todos os ânimos divergentes
e, de boa fé, se comunicam hoje como amigos. A minha presença
aqui e os meios que empreguei equivaleram, para os criminosos, a um exército
legal. Fugiram todos os criminosos e só tive, ao redor de mim e
de todo o termo, cidadãos pacíficos. Os criminosos perderam
os protetores e estes passaram a ser os primeiros interessados na perseguição
do crime.
Outro tanto pudesse
eu conseguir em Tauá, para onde têm corrido todos os criminosos,
não só deste termo, mas ainda de diferentes pontos da província!
E com que desprazer, não participo a V. Exa. que a maior parte
dos criminosos do norte deste termo aí têm achado protetores,
em cujas casas estão. E que protetores... - Pessoas mui influentes
do lugar!
Chegamos verdadeiramente
ao nó górdio. Não se pode, Sr. Presidente, tirar
resultados duradouros para nós, para maiores que sejam os sacrifícios,
enquanto, já não digo no Brasil, porém em nossa província,
houver homens que se persuadam que é grande heroicidade proteger
assassinos e criminosos. São estes batidos aqui, correm para ali
e quem de lá os tirará? O que tenta perpetrar o crime diz
com todo atrevimento. Zombo das Leis e das autoridades, porque tenho em
meu favor e em tal parte o capitão fulano, que é de outro
termo. Este recebe o assassino em sua casa e diz, para todos o ouvirem:
- Venham cá tirá-lo! O Capitão fulano é um
rei do lugar, ligado por parentesco com as pessoas mais ricas e de representação.
E vão tirar
o criminoso das mãos do capitão fulano!... Os juízes
de paz, que ou são parentes dependentes do capitão fulano
ou se não querem comprometer, dormem profundo sono sobre as lágrimas
da infeliz viúva, que pede a punição do que matou
o seu esposo, o qual vive publicamente na casa do capitão fulano.
Irritam-se
os ânimos contra estes desprezos, não se confia mais nada
da lei e nem das autoridades, armam-se uns poucos e aqui temos novos assassínios!
Veja V. Exa. que remédio a isso se pode dar. A imoralidade e a
ignorância, causas fatais de todos esses males, só podem
ser curadas por longos anos. O meio que nos resta é, em todo o
sentido, improfícuo, porque está de todo dependente da rigorosa
execução das leis. Que gente temos para isso? O mal tem
contaminado tudo e, como para executar as leis se necessita lançar
mão de gente do país, eis aí onde está o nó
górdio. Corsário não atira em corsário.
Além
dos males que sofremos, por terem em nossa própria província
ponto de apoio os criminosos, nossos sofrimentos se multiplicam por termos
o mal de serem limítrofes os fins desta província, pelo
lado da minha comarca, com os do Piauí, onde se desconhece, sem
exemplo, o império da lei. Ali os assassinos cruzam impávidos
todos os caminhos. Creio ser muito raro achar-se um homem ali, que pelo
menos, não seja protetor de assassinos. Daqui acontece que, quando
os malvados de nossa terra não acham asilo aqui mesmo, para lá
correm sem susto, e V. Exa. sabe que custo há em seguir criminosos
em província estranha, ainda mesmo naquelas onde se respeita a
lei. Avalie, agora, fugindo os assassinos para o Piauí!...
Em
nossa província, quando o criminoso foge para diferente termo considera-se
seguro. É uma das coisas difíceis prendê-lo e puni-lo.
Dos
juízes de paz me queixo. A eles atribuo a maior parte dos crimes
de nossa terra. Aqui tem lugar reclamar de V. Exa., cuja voz é
ouvida em toda a província, medidas enérgicas (que eu as
desconheço contra tais autoridades), ao menos que metam terror
a essas autoridades policiais que consentem, no círculo de suas
jurisdições, pessoas criminosas de outro termo, sem a menor
averiguação. Não é isto admirável,
é verdade, para mim, ao ver que eles não perseguem os criminosos
do seu distrito.
Apenas
aqui cheguei, apresentaram-me várias queixas, deste e de outro
gênero, contra um juiz de paz. Dei andamento a esse negócio,
foi processado o juiz de paz e já respondeu perante os jurados.
Isto aproveitou e continuo, porque é mui útil ao nosso País
punir as autoridades prevaricadoras. Mandei processar também o
juiz municipal, porém o crime dele era por ignorância, por
essa razão foi logo absolvido pelo juiz de acusação,
como verá V. Exa. da nota dos sentenciados.
Vamos
agora dar parte a V. Exa. do mais que fizemos. Reuni a junta policial
neste termo, dei-lhe ilustração conveniente, para que os
criminosos fossem presos e o Código Penal, na parte policial, bem
executado. Fiz um regulamento, pelo qual os juízes de paz, em menos
de um dia, devem saber as pessoas que de novo vierem habitar o seu distrito.
Sobre isto apertei muito a polícia, porém, aproveitando
toda a força da lei, dela não me desviei.
Para
conhecer os que não trabalham e não têm ocupação
honesta, dei regras aos juízes de paz obrigando os inspetores de
quarteirão a darem, em uma lista mensal, conta dos proprietários
e agregados, etc, e da ocupação de cada um, por onde se
conhecerá o vadio e, por isso, o criminoso.
Como
por aqui não há cadeias, consenti que se fizesse um tronco,
não obstante saber eu que como prisão é inconstitucional,
porém dando-lhe outra aplicação, não é
contra a Constituição. Por isso, assim se fez. Só
servirá para segurança dos presos, por uma noite ou algumas
horas, enquanto se apresenta a força que deve conduzir o criminoso
para a cadeia segura. Isto, a Constituição não proibe.
Como
a falta de prisão aqui é uma das causas da impunidade, promovi
uma subscrição para a obra, a qual já está
muito adiantada. Espero tudo dos habitantes do país, porém
eles são pobres e a obra é volumosa. Veja V. Exa. se pode
aplicar uma parte das rendas públicas para fim tão útil.
Requisito,
para benefício do povo deste termo, uma escola de primeiras letras.
Para V. Exa. convencer-se que é grande a necessidade, basta dizer-lhe
que este termo, podendo dar quase 300 jurados, só deu cento e tantos,
porque os outros, tendo os mais requisitos, não sabem ler.
Pedi
ao oficial, encarregado do destacamento de Quixeramobim, 16 praças.
Mandou - mas, porém de nada servem, porque me proibe levá-las
para o Tauá, onde havia urgente necessidade dessa força.
Requisitei de novo ao oficial, fundado nos ofícios de V. Exa.,
e agora vejo, pela resposta que me dá, que V. Exa. deu contra-ordem.
Esta
contrariedade e outras disposições em minha comarca, onde
sou chefe de polícia sem ser ouvido, poderiam desgostar-me, mas
são pequenas coisas de que não faço caso e desaparecem
à vista do bem de meu País. Aqui não é o poder
executivo que antipatiza com o judiciário, porque este nada tem
obrado em contrário àquele. São indisposições
de homem a homem, que só podem me ofender porque ofendem o meu
País.
No
dia 4, parto para o Tauá. V. Exa. para lá pode dirigir-me
suas ordens. Deus guarde a V. Exa. por muitos anos. Julgado de Maria
Pereira, 30 de janeiro de 1835."
*Texto
extraído do livro Padre Ibiapina, peregrino da caridade, de F.
Sadoc de Araújo, Gráfica Tribuna do Ceará, 1995,
p. 79-82.
Padre
Ibiapina (1806-1883): um apóstolo do Nordeste.
Fotografia: Acervo do Instituto do Ceará (Histórico, Geográfico
e Antropológico).
1. José Antônio Pereira, cujo nome foi alterado para José Antônio de Maria Ibiapina, nasceu
em Sobral-CE a 5 de julho de 1806 e faleceu em Santa Fé-PB a 19
de fevereiro de 1883, aos 76 anos de idade. Era filho de Francisco Miguel
Pereira e de Tereza Maria de Jesus. No ano de 1823 foi matriculado no
Seminário de Olinda-PE para tornar-se sacerdote. Com a morte da
sua mãe, a 4 de novembro daquele mesmo ano, aos 38 anos de idade,
seu pai solicita o seu retorno ao Ceará. Participantes da Confederação
do Equador (1824), o pai, Francisco Miguel é fuzilado, em maio
e o irmão mais velho é deportado para Fernando de Noronha,
onde é assassinado, no ano de 1825. Com a fundação
da Faculdade de Direito de Olinda-PE em 1828, Ibiapina matricula-se na
mesma, bacharelando-se no ano de 1832, naquela que seria a sua primeira
turma de bacharéis. Em 1833 foi nomeado juiz de direito da comarca
de Quixeramobim-CE e é eleito deputado geral pelo Ceará.
Naquele mesmo ano um episódio provocou uma forte desilusão
no bacharel e deputado geral. A sua noiva, Carolina Clarence, filha de
Tristão Gonçalves Pereira de Alencar (líder da Confederação
do Equador e que passou a chamar-se Tristão Gonçalves de
Alencar Araripe) e Ana Porcina Ferreira de Lima (que após a morte
do marido passou a chamar-se Ana Triste de Alencar Araripe), com quem
tinha casamento marcado para o final do ano, fugiu com o seu primo Antônio
Sucupira. Após desentendimentos com o presidente da província
do Ceará, padre José Martiniano de Alencar, Ibiapina renuncia
ao cargo de juiz de direito. Concluiu o seu mandato de deputado no ano
de 1837, não mais disputando a legislatura seguinte, preferindo
afastar-se do cenário político, tão decepcionado
com o que presenciara na Assembléia Nacional nos quatro anos que
ali passou. Em 1838 deixa o Ceará para viver em Recife-PE, onde
dedica-se à advocacia. A transição da vida laica
para a sacerdotal dera-se de forma repentina e curiosa. Não podemos
admiti-la como inesperada uma vez que desde os primórdios alimentava
tal vocação. Como afirma Celso Mariz: "Ela vinha
se processando de muito tempo. Pelos primeiros estudos. Pela atenção
e renovação dos sacramentos. Pela preparação
adquirida em latim, em filosofia, em teologia e demais especialidades...
Para padre só mesmo faltavam as vestes". Em 1850 abandona
a advocacia e segue a vocação religiosa. Foi um amigo seu,
o Dr. Américo Militão de Freitas Guimarães (1825-1896),
um acadêmico de Direito, que lhe arrancou um dia a decisão.
O Dr. Américo Militão de Freitas Guimarães era filho
de Manoel Procópio de Freitas (o 1º presidente da Câmara
Municipal de Maria Pereira) e de Delfina Francisca Guimarães, e
viria a ser desembargador e 1º vice-presidente da província
do Ceará e que, com a morte do Dr. Antônio Caio da Silva
Prado, assumiu a presidência no período de 25 de maio a 10
de julho de 1889, quando a entregou ao presidente nomeado, senador Henrique
Francisco d’Ávila. A ordenação sacerdotal de
Ibiapina ocorreu em 3 de julho de 1853, passando a adotar o nome de José
Antônio Maria Ibiapina. O novo padre estava prestes a completar
47 anos de idade. Em 1860 o padre Ibiapina iniciou a sua vida missionária.
Açudes, cemitérios, hospitais, escolas, sem falar nas Casas
de Caridade, obras de Ibiapina, revelam um intenso espírito socializante
ou associativo, o que o tornariam o "Peregrino da Caridade".
2.
Segundo Benedito Silva: "Foi instalado júri
em dois povoados, São João do Príncipe e Maria Pereira,
lugarejos considerados antros de crimes e impunidades."
3.
Como está dito no texto do ofício, Dr. Ibiapina
enviou em anexo dados estatísticos das sentenças proferidas
nos 53 processos, que transitaram em julgado durante sua estada em Mombaça:
"Sentenciados pelo Júri de Sentença à prisão:
13. Pronunciados e a pronúncia sustentada pelo Júri de Acusação:
20. Absolvidos pelo Júri de Acusação, por não
achar matéria: 10. Absolvidos pelo Júri de Sentença:
10." Como se vê, o jovem juiz de direito não compactuava
com a tão censurada morosidade da justiça e se desdobrou
em esforços para desengavetar todos os processos pendentes.
(Fontes:
Ibiapina: um apóstolo do Nordeste, de Celso Mariz; Padre Ibiapina,
de Benedito Silva; Padre Ibiapina, peregrino da caridade, de F. Sadoc
de Araújo).
Música-tema
da página: Odeon, de Ernesto
Júlio Nazareth (1863-1934), pianista e compositor
brasileiro, considerado um dos grandes nomes do "tango brasileiro"
ou, simplesmente, choro.
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