“Jamais
se deve confundir uma cidade com o discurso que a descreve. Contudo há
uma ligação entre eles”. (Italo Calvino)
Meu
discurso de menina nordestina, que aqui chegou nos anos 40, é uma
peça repleta de surpresas. Acostumada a deter os olhos na amplidão
dos verdes mares rodeados de coqueiros do Ceará, estranhei os limites
da nova paisagem de ruas e casas separadas umas das outras, das quais
escapavam odores e sons, que me eram desconhecidos. Ao percorrer os espaços
da memória, recordo a impressão de ter descido numa terra
estrangeira em que sotaques bem diversos dos que deixara para trás
estimulavam desejos, emoções, e um dia seriam objeto de
recordações.
A
essência da cidade, que se tornou minha, e à qual incorporei
sonhos e ambições, já estava latente na fusão
das etnias constituídas por árabes, judeus, portugueses,
armênios, japoneses, italianos, espanhóis e muitos outros
que formaram significativo microcosmo cultural resultante da junção
de verdades e sabedorias.
Descobri
ter chegado ao porto dos que desejavam construir suas vidas, recanto da
esperança, sem discriminar sexo, idade, religião, condição
social, aos que ingressavam em seus domínios.
Ainda
em formação, a cidade trazia latente na poeira vermelha,
na limpidez azul de um céu de beleza singular a chama do progresso.
A multiplicidade das raízes, responsáveis pela riqueza cultural,
mantinha-a conectada com o resto do universo.
Patriarcas,
com nomes que me soavam estranhos, como Dibo, Pedrossian, Calarge, Giordano,
Nakao, viram a luz no além-mar, mas foi aqui que assumiram o papel
de construtores de uma história em que mudanças se sucederam
em cadeia.
Quando
alguns deles se foram, outros continuaram a linha de renovação
a que está sujeita a vida e assim novos elementos se acrescentaram
ao diálogo, que não se interrompeu, mesmo nas mais difíceis
ocasiões.
Hoje,
quando o olhar percorre a cidade, meu discurso traduz o que vi e vivi
nos longos anos em que fui testemunha do quanto foram capazes as identidades
que aqui se estabeleceram e produziram indústrias, fontes de comércio,
educação, turismo, arquitetura, publicidade.
É
admirável pensar que de elementos tão divergentes nunca
brotaram atos de terrorismo, ambição, inveja, humilhação.
Em vez disso o que se observa é a paz que emana dos prédios,
das praças, das escolas numa cidade aberta, livre de preconceitos,
onde cada habitante se julga dono do ar que respira, das distâncias
que percorre.
As
diversidades foram as grandes fontes geradoras do progresso local.
Ao
descer do trem pela primeira vez em Campo Grande, fui aqui recebida com
alegria para a missão de plantar e fazer crescer os meus sonhos.
Aprisionada
por ondas de carinho, faço parte de uma paisagem simbólica
na qual a liberdade é força motriz, presente nas conquistas
que fizeram de Campo Grande uma cidade sem fronteiras.
Fonte:
Revista da Academia Sul-Mato-Grossense de Letras, nº 10, Agosto de
2006, p. 38-39.
Untitled Document
*Maria
da Glória Sá Rosa. Professora e escritora.
Nasceu em Mombaça, Ceará, no dia 4 de novembro de 1927,
filha de Tertuliano Vieira e Sá e de Cleonice Chaves e Sá,
tendo ido criança para Campo Grande, onde residia desde 1939 e faleceu em 28 de julho de 2016, aos 88 anos de idade.
Graduou-se em Línguas Neo-Latinas na Pontifícia Universidade
Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio). Participou em 1961 da fundação
e instalação dos primeiros cursos superiores de Campo
Grande, na Faculdade Dom Aquino de Filosofia, Ciências e Letras
(FUCMT), embrião da Universidade Católica Dom Bosco (UCDB), onde
lecionou durante 17 (dezessete) anos. Ali criou o Teatro Universitário
Campo-grandense (TUC) e a revista Estudos Universitários. Foi
coordenadora do Curso de Letras no qual promoveu diversos cursos e semanas
literárias. Coordenou diversos festivais de teatro e de música
em Campo Grande e produziu os programas Intercomunicação
na TV Morena e Mensagem ao Mundo Feminino na Rádio Educação
Rural. Em 1967 começou a trabalhar na Universidade Federal de
Mato Grosso (UFMT), onde chefiou vários de seus organismos culturais,
promovendo exposições de artes plásticas, ciclos
de conferências, cursos literários e o Projeto Prata da
Casa, tendo sido responsável pela edição do disco
de mesmo nome. Foi presidente da Fundação de Cultura de
Mato Grosso do Sul e do Conselho Estadual de Cultura, onde atuou durante
20 (vinte) anos. Era professora aposentada da Universidade Federal
de Mato Grosso do Sul (UFMS), membro da Academia Sul-Mato-Grossense
de Letras (ASL) e da Associação Brasileira de Críticos
de Arte (ABCA). Foi fundadora da Aliança Francesa de Campo Grande
e do Cine Clube de Campo Grande. Publicou as obras: Cultura, Literatura
e Língua Nacional (1976) em parceria com Albana Xavier Nogueira;
Memória da Cultura e da Educação em Mato Grosso
do Sul (1990), acompanhada de vídeo; Memória da Arte em
Mato Grosso do Sul (1992), em parceria com Idara Duncan e Maria Adélia
Menegazzo, acompanhada de vídeo; Deus Quer, o Homem Sonha, a
Cidade Nasce (1999); Crônicas de Fim de Século (2001),
Contos de Hoje e Sempre: Tecendo Palavras (2002); Artes Plásticas
em Mato Grosso do Sul (2005), em parceria com Idara Duncan e Yara Penteado
e A Música em Mato Grosso do Sul (2009), em parceria com Idara
Duncan. Além de oito livros, publicou centenas de artigos sobre
cultura nos jornais locais e fez inúmeras conferências
sobre educação e cultura em todo o Estado, prefácios
para autores de Mato Grosso do Sul e apresentações de
catálogos de arte. Foi Assessora Cultural do Centro
de Educação Integrada (CEI) em Campo Grande. Recebeu o título
de Doutora Honoris Causa pela Universidade Federal de Mato Grosso do
Sul (UFMS), em 2007 e pela Universidade Católica Dom Bosco (UCDB), em 2012.
Foi
casada durante 56 anos com o engenheiro agrônomo e pecuarista
José Ferreira Rosa, falecido em 4 de junho de 2008, com quem
teve quatro filhos: José Carlos, José Boaventura (falecido),
Luiz Fernando e Eva Regina e sete netos: André, Amanda, Paloma,
Luiz Henrique, Maria Rita, Gabriel e Maria Thereza.
A professora Glorinha é considerada ícone da educação
e da cultura de Mato Grosso do Sul.
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