ARTIGOS
LEMBRANÇAS DE UMA MÃE
A
professora e escritora mombacense Maria da Glória Sá Rosa
recebendo uma placa das mãos do prefeito municipal de Campo Grande-MS
Nelson Trad Filho, por ocasião da XIX Noite Nacional da Poesia, em 2006.
Maria
da Glória Sá Rosa*
“Chove?
Nenhuma chuva cai...
Então onde é que eu sinto um dia
Em que o ruído da chuva atrai
A minha inútil agonia?”
(Fernando Pessoa)
Uma
neblina espessa tomava conta da cidade. No escuro, gotas de chuva miúda
caíam doloridas no coração dos filhos, que acompanhavam
a mãe à última morada. Cada um tinha uma lembrança
particular daquela mulher que se esquecera de si mesma para devotar-se
inteiramente aos outros. Era quase impossível acreditar que uma
presença poderosa, que soubera resistir a todo tipo de sofrimento,
estivesse dissolvida nas nuvens, no silêncio das interrogações
sem resposta, porque as recordações começavam a brotar
fortes para compor um perfil de generosidade e muita coragem.
A
infância e mocidade vividas em Mombaça, pequena cidade do
interior do Ceará, os anos de estudo em Fortaleza, onde se formou
professora para dedicar-se à educação dos filhos
e de tantas crianças que aprenderam com ela não apenas a
decifrar signos, mas os segredos de equacionar de forma positiva os problemas
do viver.
Muito
jovem ainda, casou-se com o comerciante Tertuliano Vieira e Sá,
espírito inquieto, alma de cigano, que foi seu companheiro por
mais de trinta anos e com quem partilhou a aventura da mudança
para uma região muito diferente daquele Ceará de brancas
praias, embaladas por coqueiros. Campo Grande, que nos longínquos
anos 30 era uma grande fazenda de ruas invadidas pela poeira, casas distantes
uma das outras foi o local escolhido pelo marido para escaparem dos problemas
da seca, na tentativa de conseguirem a afirmação econômica
que o Nordeste lhes negara.
Não
lembro de tê-la ouvido uma só vez reclamar das dificuldades
de adaptação ao novo lar, situado nos fundos de um armazém
na rua 14 de julho.
O
que revejo é o sorriso meigo, debruçada sobre a máquina
de costura, ou preocupada com o preparo dos alimentos para os seis filhos,
que vieram acrescentar-se à dinâmica da vida familiar. Em
Fortaleza, ficaram os livros que eram seu prazer maior, as conversas com
as amigas da Escola Normal, as idas ao teatro José de Alencar.
Logo
na chegada, pensou em lecionar em Campo Grande, mas desistiu porque as
leis daquele tempo não reconheciam o diploma de professores de
outros estados, considerados leigos. Assim, teve de contentar-se em dar
lições de sabedoria aos filhos, sobrinhos, afilhados, que
a procuravam nas necessidades, certos de que haveria sempre uma solução
saída de sua boca para as inquietações do cotidiano.
Lembro-me da frase com que nos costumava consolar nas grandes aflições.
“Tudo passa, basta apenas um pouco de paciência para sobreviver.”
Não
fazia reivindicações especiais. Viagens, passeios, presentes,
não faziam parte de seu repertório. Limitava-se a transferir
sonhos e desejos para os filhos, que eram a grande meta de sua existência.
Acompanhou o crescimento, os estudos de cada um, ajudando-os nas lições,
vibrando com os resultados obtidos. Considerava uma obrigação
mantê-los unidos pela “identidade do sangue, que age como
cadeia” conforme o verso de Drummond. Por longos anos, o envelope
verde de suas cartas aéreas, redigidas com a elegância de
uma caligrafia impecável foram o elo simbólico da ligação
com os sucessos e fracassos dos filhos. Apesar das enfermidades, a mão
trêmula não a impedia de verter coragem nas linhas, que lhe
fugiam ao controle.
E
na viagem ao fundo de mim mesma, naquela tarde escura de 3 de agosto de
1983, em que a agonia da chuva acontecia dentro de nós, deixei
de repente de pensar na mulher doente e envelhecida para imaginar a jovem
que me pôs no mundo e à qual sempre estive ligada, apesar
dos diversos ambientes que nos separavam. Lembrei-me das histórias
que me contava. Dos textos que escrevi para ela, consciente de que não
nos abandonava para sempre. Um fio misterioso nos continuaria ligando
no espaço da memória, que é a verdadeira vida, conforme
atestam os filósofos. Gostaria que do outro lado do mundo, Cleonice
Chaves e Sá, minha mãe, pudesse sentir que foi a essência
da minha e das vidas que gerou e ajudou a construir. O tempo, rio de águas
ardentes, não lhe apagou o sorriso, a bondade, o jeito generoso
de ser.
Untitled Document
*Maria
da Glória Sá Rosa. Professora e escritora.
Nasceu em Mombaça, Ceará, no dia 4 de novembro de 1927,
filha de Tertuliano Vieira e Sá e de Cleonice Chaves e Sá,
tendo ido criança para Campo Grande, onde residia desde 1939 e faleceu em 28 de julho de 2016, aos 88 anos de idade.
Graduou-se em Línguas Neo-Latinas na Pontifícia Universidade
Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio). Participou em 1961 da fundação
e instalação dos primeiros cursos superiores de Campo
Grande, na Faculdade Dom Aquino de Filosofia, Ciências e Letras
(FUCMT), embrião da Universidade Católica Dom Bosco (UCDB), onde
lecionou durante 17 (dezessete) anos. Ali criou o Teatro Universitário
Campo-grandense (TUC) e a revista Estudos Universitários. Foi
coordenadora do Curso de Letras no qual promoveu diversos cursos e semanas
literárias. Coordenou diversos festivais de teatro e de música
em Campo Grande e produziu os programas Intercomunicação
na TV Morena e Mensagem ao Mundo Feminino na Rádio Educação
Rural. Em 1967 começou a trabalhar na Universidade Federal de
Mato Grosso (UFMT), onde chefiou vários de seus organismos culturais,
promovendo exposições de artes plásticas, ciclos
de conferências, cursos literários e o Projeto Prata da
Casa, tendo sido responsável pela edição do disco
de mesmo nome. Foi presidente da Fundação de Cultura de
Mato Grosso do Sul e do Conselho Estadual de Cultura, onde atuou durante
20 (vinte) anos. Era professora aposentada da Universidade Federal
de Mato Grosso do Sul (UFMS), membro da Academia Sul-Mato-Grossense
de Letras (ASL) e da Associação Brasileira de Críticos
de Arte (ABCA). Foi fundadora da Aliança Francesa de Campo Grande
e do Cine Clube de Campo Grande. Publicou as obras: Cultura, Literatura
e Língua Nacional (1976) em parceria com Albana Xavier Nogueira;
Memória da Cultura e da Educação em Mato Grosso
do Sul (1990), acompanhada de vídeo; Memória da Arte em
Mato Grosso do Sul (1992), em parceria com Idara Duncan e Maria Adélia
Menegazzo, acompanhada de vídeo; Deus Quer, o Homem Sonha, a
Cidade Nasce (1999); Crônicas de Fim de Século (2001),
Contos de Hoje e Sempre: Tecendo Palavras (2002); Artes Plásticas
em Mato Grosso do Sul (2005), em parceria com Idara Duncan e Yara Penteado
e A Música em Mato Grosso do Sul (2009), em parceria com Idara
Duncan. Além de oito livros, publicou centenas de artigos sobre
cultura nos jornais locais e fez inúmeras conferências
sobre educação e cultura em todo o Estado, prefácios
para autores de Mato Grosso do Sul e apresentações de
catálogos de arte. Foi Assessora Cultural do Centro
de Educação Integrada (CEI) em Campo Grande. Recebeu o título
de Doutora Honoris Causa pela Universidade Federal de Mato Grosso do
Sul (UFMS), em 2007 e pela Universidade Católica Dom Bosco (UCDB), em 2012.
Foi
casada durante 56 anos com o engenheiro agrônomo e pecuarista
José Ferreira Rosa, falecido em 4 de junho de 2008, com quem
teve quatro filhos: José Carlos, José Boaventura (falecido),
Luiz Fernando e Eva Regina e sete netos: André, Amanda, Paloma,
Luiz Henrique, Maria Rita, Gabriel e Maria Thereza.
A professora Glorinha é considerada ícone da educação
e da cultura de Mato Grosso do Sul.
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