HISTÓRIA

Tenente-coronel José Aderaldo de Aquino
(1857-1920), avô materno do ex-governador do Estado do Ceará
Plácido Aderaldo Castelo (1906-1979) e sobrinho-neto do capitão
Antonio Honorato Silva Limoeiro (1805-1900).
CAPITÃO
ANTONIO HONORATO SILVA LIMOEIRO*
Estácio
José da Gama¹, o matador de Luciano Domingues
de Araujo, vendo que não fora perseguido, cuidou de afastar-se
calmamente do local do crime; tendo, porém, de atravessar a estrada,
teve o caiporismo de encontrar-se ao sair do mato, com seu primo Apolinario
Lopes, que mais abaixo havia cruzado no caminho com a comitiva conduzindo
a rede com o ferido, sendo informado do crime e dos sinais do assassino,
que coincidiam justamente com os de Estacio. Na mesma ocasião,
foi visto também por um vaqueiro, que passava na estrada conduzindo
três bois.
Vendo-se assim denunciado,
Estacio tratou de fugir para outra ribeira.
Por esse tempo, dera-se
na vila de Quixeramobim um outro crime sensacional: um
negociante rico, que morava num sobrado, ouvindo à noite ruídos
no seu armazém, no andar térreo, desceu para ver o que era.
Estava arrombando as
prateleiras um soldado da guarda nacional, de nome João
Carirí, que atravessou com o sabre o negociante, que lhe
embargara a saída, e fugiu levando o sabre e a granadeira.
Os dois assassinos
juntaram-se e foram ocultar-se na serra da Mombaça.
As autoridades de Quixeramobim,
recebendo denúncia do paradeiro dos criminosos, oficiaram ao Capitão
Manoel Honorato da Silva Limoeiro², subdelegado
de polícia de Maria Pereira, comunicando as informações
obtidas e ordenando a prisão dos facínoras.
Era o Capitão
Honorato um diligente e pertinaz sertanejo, que vivia nas brenhas
do alto Banabuiú, criando gado na fazenda Barra
Nova e plantando cana e cereais no engenho Flores,
uma légua distante. Tendo casado cedo, aos trinta e seis anos já
tinha filhos rapazes, que o ajudavam na faina da lavoura. Alternando com
essa vida pacata, exercia com sagacidade e destemor as arriscadas funções
policiais, que lhe foram confiadas. Forte e ágil, calmo e intrépido,
o subdelegado de Maria Pereira tornou-se famoso na perseguição
dos criminosos, que o temiam e odiavam.
Recebendo a denúncia
e a ordem de captura, o Capitão Honorato, conhecedor
de todos os meandros dos caminhos e de todos os moradores do seu distrito,
teve facilidade em apanhar um rapazinho desconhecido que descia das quebradas
da serra.
Interrogando-o com
habilidade e rigor, veio a saber que se tratava de um sobrinho de Estacio
da Gama, que lhe viera trazer mantimentos no esconderijo, donde vinha
voltando.
Pôde assim organizar
com sua gente uma pequena patrulha, sendo acompanhado pelo rapaz, que
foi obrigado, sob a ameaça de um cipó, a indicar o pouso
dos criminosos.
Por uma fralda da serra
da Mombaça, marchava cautelosamente a patrulha,
pisando macio sem fazer ruído no empenho de apanhá-los de
surpresa, quando o rapaz escorregou numa pedra e caiu, soltando ligeiro
grito. O Capitão, percebendo que a queda, propositada, fora um
sinal dado aos assassinos, que deviam estar muito perto, correu para a
frente, com os companheiros, num rápido assalto. Os dois criminosos,
surpreendidos, tiveram que fugir com tanta urgência, que nem tempo
tiveram de apanhar as armas; correndo e pulando por grotões abaixo,
não puderam ser alcançados, apesar da renhida perseguição.
No rancho abandonado
às pressas, ficaram dependuradas as armas e as mochilas de provisões
e as redes armadas sob a pequena coberta de palha de pindoba. Junto ao
fogo, em que ardiam, cobertos de cinza, tições de catingueira,
que não se apagavam, estava espetado sobre as brasas, assando no
próprio casco, um tatu verdadeiro, gordo e cheiroso, que não
foi desprezado.
O Capitão
Honorato, muito desapontado por ter perdido o bote, que julgava
certo, recolheu o bacamarte de Estacio da Gama e a granadeira de João
Carirí, guardando-os em sua casa, como troféus da malograda
expedição.
Na semana seguinte
os dois criminosos, já providos de novas armas, abordaram na estrada
de Maria Pereira um viajante, por quem mandaram avisar
ao subdelegado que se preparasse, que eles viriam buscar as armas tomadas.
Recebendo o atrevido
recado, o Capitão Honorato pensou em precaver-se
para receber a afrontosa visita anunciada; acostumado, porém, a
ligar pouca importância aos riscos de sua vida perigosa, e não
querendo parecer que ficara com medo da ameaça dos dois bandoleiros,
desprezou os conselhos da prudência e determinou que seus filhos,
agregados e escravos seguissem para o sítio Flores,
onde havia muito serviço urgente naquele princípio de inverno,
quando o mato crescia rapidamente, ameaçando afogar as plantações
ainda muito tenras. Na fazenda Barra Nova, que era só
de criação, era pouco o serviço.

Casa sede da Fazenda Barra Nova, no município de Mombaça, onde o capitão Antonio Honorato Silva Limoeiro efetuou as prisões de Estácio José da Gama e de João Cariri, no ano de 1834, e onde residiu até o seu falecimento em 1900, aos 95 anos de idade. Fotografia: Francisco de Assis Vieira Sá, obtida em 28 de agosto de 2015.
Naquela manhã
chuvosa dos fins de fevereiro, estava o Capitão Honorato
no curral, de calça arregaçada, pisando na lama, tirando
o leite das vacas, auxiliado por um negrinho, que ia soltando os bezerros.
Desleitava a última vaca, quando ouviu um cumprimento que lhe era
dirigido da porteira do curral:
- Sr. Capitão,
bom dia!
Voltando
a cabeça, viu debruçados sobre os varões da porteira
os dois atrevidos criminosos, bem armados.
-
Bom dia. Que desejam?
-
Queremos uma palavra, Sr. Capitão.
-
Esperem um momento, que eu acabe meu serviço, que estarei às
ordens.
Escorrupichou
os peitos da vaca, puxou a ponta do arrelhador, soltando o bezerro, e
disse aos visitantes:
-
Façam o favor de arrodear para a frente da casa, que lá
irei atendê-los.
E
sem esperar resposta dirigiu-se para os fundos da casa, que davam para
o curral, levando na palma da mão esquerda a cuia de leite e o
arrelhador jogado sobre o ombro, na postura habitual; nisso ouviu atrás
de si uma voz:
-
Não atire no homem!
Percebeu
assim que uma arma lhe fora apontada pelas costas; não se voltou;
continuou a marchar como se nada ouvira; apenas esguiou a barriga, parecendo-lhe
que ficara da grossura de um dedo.
Despejando
o leite no pote sobre o jirau, entrou pela porta da cozinha e viu que
sua esposa estava apavorada; e lhe pediu:
-
Minha mulher! pelo amor de Deus, não dê sinal de medo!
E,
por via das dúvidas, trancou-a na despensa, donde tirou um par
de cordas de carnaúba, que entregou à escrava cozinheira,
dizendo-lhe:
-
Fique aqui, com estas cordas, sem fazer o menor barulho; quando eu chamar,
leve as cordas, para amarrar os cabras.
E
saiu para a sala da frente, completamente desarmado, e convidou os dois
homens a entrarem. Estes entreolharam-se desconfiados, mas, insistidos,
entraram, ficando de pé no meio da sala, sustentando as armas na
posição de sentido.
Honorato
fechou a banda inferior da porta, que era partida horizontalmente ao meio,
e calcou bem a tramela, que era muito apertada.
-
Sentem-se, disse-lhes, indicando um banco.
-
Muito obrigado; a conversa é pouca.
-
Estou às ordens.
-
Capitão Honorato, nós viemos buscar as
nossas armas.
-
Se eu entregar essas armas, ficarei desmoralizado em toda a comarca. Vamos,
porém, entrar num acordo; darei uma bolsa de ouro a cada um...
-
Não só queremos as armas.
-
Naquele cercado tenho dois cavalos muito fortes e naquele quarto bons
arreios...
-
Não só queremos as armas.
Honorato
chamou o moleque e pediu água para lavar as mãos. E continuou
querendo demonstrar as vantagens de suas propostas aos obstinados antagonistas.
Volta
à sala o negrinho com a bacia d'água; e vendo que seu senhor
esticava os braços para diante sungando as mangas, pôs-se-lhe
na frente, apresentando-lhe a bacia, e voltando as costas para os dois
facínoras.
-
Oh! atrevido! gritou-lhe Honorato, dás as costas
a estes senhores?!
E
ao mesmo tempo, com as costas da mão, deu-lhe violenta bofetada,
que o fez rolar com a bacia para um canto da sala. Os dois cabras, como
era natural, acompanharam com a vista o espetacular trambolhão
do moleque.
Outra
coisa não queria Honorato, que pulou como um tigre
sobre eles, atingindo violentamente com os pés o estômago
de Estacio, que caiu desacordado, e arrancando com as mãos possantes
e destras as armas de Carirí, que esmoreceu e ficou sem ação,
sob a mira de seu próprio clavinote, manejado pelo agilíssimo
Capitão.
Honorato
chamou então a escrava, que, seguindo suas ordens, atou com arrochados
"nós-de-porco" os braços de Carirí, que
foi amarrado ao esteio.
Só
então é que Estacio foi recobrando os sentidos; e vendo
a própria situação em que se achava, suplicou:
-
Não me faça mal, que eu não deixei que Carirí
lhe atirasse pelas costas!
-
Eu ouví a sua intervenção; fico-lhe muito agradecido;
mas agora nada posso fazer; tenho que cumprir as ordens que recebí;
é o meu dever.
E
Estacio foi amarrado, dizendo:
-
Está direito, Sr. Capitão; bem diz o ditado: "quem
seu inimigo poupa nas mãos lhe morre".
Honorato
ficou, porém, vacilante. Muitas vezes teve ímpetos de soltar
o preso, que lhe salvara a vida. Mas o sentimento do dever suplantou o
da gratidão.
Os
dois criminosos foram enviados para Quixeramobim, onde
entraram em meio de grande regozijo popular, sendo entregues à
justiça.
O
extraordinário deste caso é que o bravo sertanejo nunca
pensou em negociar com os cabras; puxou conversa tão somente para
distraí-los; seu único propósito era amarrá-los
e tinha plena confiança de o conseguir.
O
admirável feito do subdelegado de Maria Pereira
foi narrado pelo jornal oficial e mereceu do público aplauso unânime.
O presidente da Província, empenhado em reprimir energicamente
o crime, que então campeava impune, pediu ao governo da Regência
uma recompensa condigna para os relevantes serviços prestados à
justiça pública pelo valoroso sertanejo, a quem foi concedida
a ínsigne distinção da Comenda da Ordem de
Cristo³.
Mas
o modesto fazendeiro, avisado de que teria que pagar na Alfândega
os emolumentos regimentais para receber o honroso título, desistiu
da alta mercê, explicando aos amigos:
-
Tinha muita graça: um matuto comendador! Seria um motivo de troça.
Era só o que faltava!
E foi impossível
convencê-lo do contrário.
O Capitão
Honorato acabou seus dias na fazenda Barra Nova,
atingindo a idade de 89 anos, já então cego, mas com plena
lucidez de espiríto.
*Publicado
sob o título "A bravura de um matuto", em Antiga Família
do Sertão, de Esperidião de Queiroz Lima, Livraria Agir
Editora, 1946, pp. 158-164.

Assinaturas
autógrafas (de cima para baixo): 1 - Manoel Procopio de Freitas;
2 - João Alves de Carvalho Gavião; 3 - Antonio Claudio de
Almeida; 4 - Antonio Honorato Silva Limoeiro; 5 - Francisco Aderaldo de
Aquino. Extraído de ofício da Câmara Municipal de
Maria Pereira, enviado ao presidente da Província do Ceará
João Silveira de Sousa, datado de 11 de julho de 1858 (Arquivo
Público do Estado do Ceará - APEC).
1. Estácio José da Gama - Estácio
José da Gama foi executado em 15 de março de 1834, em Quixeramobim,
por ter, mediante pagamento, assassinado a bala e emboscada o capitão
Luciano Domingues de Araújo, no dia 11 de fevereiro de 1834. Naquela
data o capitão Luciano Domingues de Araújo, jovem e rico
fazendeiro de Boa Viagem, iria casar-se com Joanna Baptista Barreira,
filha do tenente Ignacio Lopes da Silva Barreira e de Joanna Baptista
de Queiroz, proprietários da grande e antiga fazenda do Tapuiará,
em Quixeramobim. Mesmo com o noivo moribundo, o casamento foi realizado,
ficando conhecido como as "bodas de sangue". O crime foi motivado
por uma disputa entre as famílias Maciel, de Tamboril, e Araújo,
de Boa Viagem, muito comum numa época de ódios e vinganças,
a par da exaltação política do século XIX.
O julgamento de Estácio José da Gama, marcado por muitas
irregularidades, foi considerado como um "assassinato jurídico".
João Cariri pela morte do comerciante foi condenado pelo júri
à prisão perpétua, indo findar seus dias na ilha
de Fernando de Noronha, então famoso presídio nacional.
Há controvérsias quanto a quem poupou a vida do capitão
Honorato, impedindo que o mesmo fosse alvejado pelas costas. Esperidião
de Queiroz Lima cita Estácio José da Gama. Gustavo Barroso
atribui o fato a João Cariri. Gustavo Barroso e José Jucá
o chamam de João Cacundo.
2. Manoel Honorato da Silva Limoeiro – Na realidade
chamava-se Antonio Honorato Silva Limoeiro (1805-1900), sendo erroneamente
nomeado por Manoel pelos autores Esperidião de Queiroz Lima, Gustavo
Barroso e José Jucá. Assim como também não
exercia no ano de 1834, quando o fato ocorreu, a função de subdelegado de polícia, então
inexistente, e sim de Juiz de Paz (cujas atribuições, no
Império, eram divididas em quatro categorias: conciliatórias,
judiciárias, policiais e administrativas). O capitão Antonio
Honorato Silva Limoeiro era filho de Manuel Pereira da Silva e de Francisca
Maria de Jesus, e trineto de Maria Pereira da Silva. Teve dois irmãos:
o professor Bernardo da Silva Pereira e Maurícia Pereira da Silva
(trisavó materna do ex-governador do Estado do Ceará Plácido
Aderaldo Castelo). O capitão Honorato casou-se em primeiras núpcias
com Francisca Gertrudes da Conceição, filha de seus primos
Antônio Gonçalves de Carvalho e Francisca Gertrudes da Conceição,
com quem teve oito filhos, a saber: Francisco Honorato Silva Limoeiro,
José Honorato e Silva, Manuel Honorato e Silva, Maria Gertrudes
da Conceição, Joaquina Gertrudes da Conceição,
João Honorato e Silva, Domingas Honorato e Silva e Miguel Honorato
e Silva. Enviuvando, o capitão Honorato, casou-se em segundas núpcias
com Maria do Espírito Santo Marques, filha de seu primo Pedro Ferreira
Marques e de Ana Joaquina de Jesus (pentavós paternos do editor
deste site), não tendo filhos deste casamento. O capitão
Honorato foi Juiz de Paz, Subdelegado de Polícia, Inspetor de Aulas e presidente da Câmara
Municipal de Maria Pereira (1865-1868). Dele diz José Jucá
em seu artigo Crimes célebres do Ceará, publicado na Revista
do Instituto do Ceará, de 1914: "Decorridos mezes, recebia
o digno funccionario a Commenda da Ordem de Christo com que o Imperador
galardoava tamanha bravura; título que foi, entretanto, regeitado
(sic) pelo louvável desprendimento de quem, maior do que essas
honras vans, que verdadeiro valor dão à gente, tinha o seu
próprio merecimento innato. Não sabemos o que elle possuia
em mais alto gráo: si a coragem do bravo, que vence, se a elevação
dos grandes espíritos, que dominam. Nesse edificante acto de abnegação
está, por certo, o seu maior heroismo, a glorificação
de sua nobreza."
3. Comenda da Ordem de Cristo - A Imperial Ordem de Nosso
Senhor Jesus Cristo é uma antiga ordem honorífica brasileira,
originada a partir da portuguesa Ordem Militar de Cristo, a qual por sua
vez remonta à medieval Ordem de Cristo. Foi a segunda ordem imperial
brasileira com mais titulares, logo atrás da Imperial Ordem da
Rosa, e premiava tanto militares quanto civis. A chancelaria que cuidava
dos registros da ordem pertencia ao Ministério do Império.
Destituiu-se seu caráter religioso por meio de Decreto de 9 de
setembro de 1843. Foi extinta após a proclamação
da República juntamente com a maioria das ordens imperiais.
(Fontes:
Antiga Família do Sertão, de Esperidião de Queiroz
Lima; Heróes e Bandidos: Os Cangaceiros de Nordeste, de Gustavo
Barroso; Minha Árvore Genealógica, de Manuel Costa Sobrinho;
Crimes celebres do Ceará, de José Jucá, Revista do
Instituto do Ceará, tomo XXVIII, ano de 1914, pp. 262-285; O Juiz
de Paz, do império a nossos dias, de Rosa Maria Vieira; Imperial
Ordem de Nosso Senhor Jesus Cristo, disponível em .
Acesso em 07 set. 2008)
Música-tema
da página: Odeon, de Ernesto
Júlio Nazareth (1863-1934), pianista e compositor
brasileiro, considerado um dos grandes nomes do "tango brasileiro"
ou, simplesmente, choro.
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