ARTIGOS
A CONSTITUIÇÃO NAS MÃOS DO POVO*

O
ex-embaixador do Brasil em Portugal Antônio Paes de Andrade, o jurista
Paulo Bonavides, o jurista e professor catedrático da Faculdade
de Direito da Universidade de Coimbra José Joaquim Gomes Canotilho
e o ex-presidente e ex-Primeiro-Ministro de Portugal Mário Soares.
"...Sejamos
justos. Paes de Andrade não precisa da vontade de poder de historiador:
é demasiado protagonista para ser tímido, é audaciosamente
crítico para se refugiar na história do passado. Se alguma
máscara ele pode afivelar é a de Antônio Carlos e
José Bonifácio contra o cerco da Constituinte, a de Rui
Barbosa contra a decadência do Império, a de Otávio
Mangabeira contra a ditadura corporativa getulista, a de impulsionador
das diretas já contra a continuidade autoritária militar.
Vamos calar-nos porque ele não precisa de quem o defenda: nesta
velha sala, Paes de Andrade poderá continuar a sua história."
(Prof. Dr. José Joaquim Gomes Canotilho, da Universidade de Coimbra,
por ocasião do lançamento do livro de Paes de Andrade e
Paulo Bonavides, História Constitucional do Brasil, em 25/11/2003)
A
Carta Magna do Brasil está nas mãos do povo. Esta não
é uma afirmação solta, desprovida de conteúdo,
mas a constatação de uma realidade.
Se não era,
precisamente, a Constituição que desejávamos para
o Brasil, é, no entanto, o texto possível, tendo em conta
a diversidade das correntes políticas e filosóficas que
compuseram a Assembléia Nacional Constituinte.
A nova Constituição
teve a participação popular como em nenhuma outra oportunidade.
Se a Constituição
de 1824, redigida pelos irmãos Andradas e outros constituintes,
refletiu o anseio popular surgido das campanhas da Independência
e da ânsia de promover a colônia a nação, no
entanto, a participação direta da comunidade não
existiu.
Mesmo as Cartas Constitucionais
de 1891, incorporando o movimento republicano no texto da nossa Bíblia
constitucional; a de 1934 que ganhou com a representação
sindical um alento socialmente renovador, ou mesmo a de 1946, com a participação
livre das esquerdas e alguns avanços que morreram na falta de regulamentação
de seus dispositivos; não tiveram a ação popular
direta sobre o corpo constituinte.
Aí é
que se fixa a virtude principal da nova Carta, a de 1988: a efetiva integração
popular, através das emendas com milhões de assinaturas
de gente de todas as camadas sociais e econômicas, além do
lobby das entidades de empregadores e empregados, na procura
de fórmulas harmoniosas na redação dos temas polêmicos.
Ocorre, todavia, que
a Constituição que entregamos ao povo brasileiro será
mero enfeite de prateleira se a participação popular não
tiver continuidade na sua execução.
Julgamos
mais importante, ainda, essa nova forma de participação,
em que cerca de duas centenas de dispositivos ficam na dependência
de leis complementares à Constituição e da legislação
ordinária.
Pela
sua própria natureza, as leis complementares à Constituição
exigem um quorum mínimo de 2/3 (dois terços) das
duas Casas do Congresso em que se bipartem os constituintes, que estiveram,
até agora, reunidos em bloco em face da condição
de responsáveis pelo novo texto.
Por
outro lado, a presença popular, como uma continuidade da ação
exercida durante todo o processo constituinte é fundamental para
que os dispositivos que ficaram na dependência das leis complementares
sejam imediatamente discutidos e aprovados, evitando-se o vácuo
jurídico-constitucional a que já têm feito referência
os cronistas políticos e os juristas, inclusive ministros dos nossos
tribunais superiores.
Se
algum desses dispositivos que exigem leis complementares ou que dependem
de legislação ordinária a ser aprovada têm
prazo fixado na Constituição para serem adotados, a maioria
deles, no entanto, não se sujeita a prazos, e podem, pela inércia
da comunidade, ficar oscilando entre projetos e sugestões, sem
a efetiva correspondência na sua aplicação. E essa
preocupação tem sua razão de ser, pois textos importantes
como o da participação nos lucros das empresas, já
adotados pela Carta de 1946, até hoje permanecem sem efetiva implementação.
Que
dizer, assim, de mais de 200 artigos, incisos, parágrafos, alíneas,
que transferem para a legislação comum as decisões
importantes, mesmo quanto a índices, limites, prazos, sem os quais
a discussão da auto-aplicabilidade constitucional permanece acadêmica.
Mesmo
que o § 1º do inciso LXXVII do art. 4º da nova Carta entenda
que "as normas definidoras dos direitos e garantias fundamentais
têm aplicação imediata", a verdade é que
os direitos coletivos, sociais ou econômicos constantes da Carta
e que implicam, necessariamente, direitos e garantias fundamentais, como
o de greve, da função social da propriedade para efeito
de desapropriação, até o de isenção
de Imposto de Renda dos aposentados com mais de 65 (sessenta e cinco)
anos de idade, estão dependentes do texto regulamentador ou complementador.
Diga-se,
mais, que esses novos textos de leis complementares e ordinárias
que têm pelo poder que lhes transmitiu a Constituinte a faculdade
de fixar limites, índices e prazos, na realidade podem modificar
os benefícios que parecem tão evidentes.
Toda
essa argumentação serve para demonstrar que a comunidade
não pode desmobilizar-se, pois deve acompanhar a feitura das leis
complementares da Constituição e a própria legislação
comum que estranhamente tem poderes para retardar ou invalidar parcialmente
o texto com a simples adoção de prazos ou a fixação
de limites para a greve, para a desapropriação ou de índices
em que a isenção de certos tributos deverá fixar-se.
Com
a Carta Constitucional nas mãos, o povo vai ter ainda maior responsabilidade,
pois os legisladores não são outros senão os próprios
constituintes que fizeram a Carta e que na impossibilidade, em alguns
casos, de um texto harmônico, atribuíram-se tarefas de complementá-la.
A vigilância,
a integração da comunidade no processo legislativo, o acompanhamento
dos seus trabalhos é exigência maior na nova fase de ajuste
da legislação do dia-a-dia ao texto constitucional aprovado.
*Publicado
no Jornal da Constituinte, nº 63, de 05/10/1988 (Reprodução
fac-similar em comemoração aos 20 anos da promulgação
da Constituição brasileira).
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